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Conferência inaugural do Seminário Internacional Reforma e Avaliação da Educação Superior proferida pelo ministro Tarso Genro

25/04/2005 

(sem revisão final do autor)

Tarso Genro, Ministro da Educação do Brasil

Giulio Carlo Argan , em Projeto e Destino, ilustrou de forma brilhante o significado histórico daquilo que chamamos “projeto”, ao dizer:

“o primeiro homem que fabricou um copo para beber e, depois de ter bebido, guardou-o para se servir dele novamente, tinha a memória da utilidade do copo e previa que voltaria a servir-se dele. Sobre uma experiência passada construiu um projeto para o futuro. Dos mínimos aos máximos fatos, o comportamento histórico se desenvolve num arco temporal que vai da experiência ao projeto: aquilo que é objeto no presente foi projeto do passado e é condição do futuro”.

A capacidade de construir um projeto é uma capacidade especificamente humana. Um exemplo não menos saboroso, historicamente conhecido, é aquele que menciona que o mais primitivo e vulgar dos arquitetos será sempre maior que uma laboriosa abelha, que reproduzirá infinitamente as mesmas formas de uma mesma colméia, já programada nos seus movimentos pela própria cadeia da naturalidade. No contexto de um debate ainda não terminado   - vamos publicar ainda um terceiro anteprojeto -   é que pretendo provocar algumas opiniões.

Meu tema originário “A Reforma da Educação Superior no Brasil” será agregado de uma especificação que considero fundamental, para que esta medição de idéias torne-se, ao mesmo tempo, utópica e realista; ou seja, que, de uma parte, as teses não se rendam ao “objetivismo economicista”, que tem perseguido a maioria das modificações institucionais no mundo de hoje, e, de outra, que elas versem sobre uma reforma concretamente realizável.

Trata-se de costurar um projeto de “reforma” numa formação sócio-econômica determinada   - o Brasil -,  e num contexto histórico,   - o da globalização financeira -   totalmente avesso, não somente à afirmação das funções públicas do Estado, mas também a tudo que remeta para “igualdade”, “justiça social” e “solidariedade”. Estas categorias, ordinariamente são substituídas, hoje, por outras que evocam a ideologia da naturalização das desigualdades, o dogma da eficácia absoluta do mercado e a culpabilização dos “ineptos”.

Vou agregar, portanto, à proposição inicial “A Reforma da Educação Superior no Brasil”, um complemento estrutural e vou titular esta conferência inaugural como: “A reforma da educação superior no Brasil, no contexto da globalização financeira, no qual a produção e o controle do conhecimento são vitais para a dominação global como para a construção da nação”.

Embora o título seja longo, a conferência não será pretensiosa. Ela irá tentar demonstrar, apenas, que as relações da Universidade com a nação, com o povo que constitui a nação, e com os direitos fundamentais inscritos em todas as Constituições modernas, são as únicas relações que dão legitimidade a um projeto de reforma.Sem estas relações integradas na concepção da reforma ela passa a ser mero jogo tecnocrático e organização de retalhos para a conformação de interesses.

A construção de uma universidade renovada no país, a partir de tudo que ela já nos legou, neste novo contexto globalizado, não poderá ser o resultado de uma mímese empobrecida do que já foi feito nos países centrais. Não só porque estas universidades também já estão em crise, mas também porque são instituições de nações já realizadas. Não é o caso do nosso país, cuja modernização estrutural começa na Revolução de 30 e ainda não encontrou o seu desfecho estável relativamente consolidado.

De outra parte, aqueles países já realizaram reformas institucionais e políticas democráticas  - progressistas ou conservadoras -   há muitos anos e, mesmo assim, as suas universidades já não respondem, hoje, aos desafios de um progresso científico-tecnológico, compatibilizado com os objetivos de justiça social e da paz mundial.

Esta crise do ensino superior no “primeiro mundo” está refletida na estratégia definida pelo Conselho Europeu de Lisboa, de março de 2002  . Aquela estratégia “traduz com exatidão o duplo movimento de redução do poder dos Conselhos eleitos na universidade”, com a implementação de novas práticas de avaliação que têm uma ótica meramente mercantilista das funções da universidade. Pela visão ali consolidada “a educação e a formação são consideradas fatores determinantes para construir a economia do conhecimento mais competitiva e mais dinâmica do mundo”, sem que esta “competitividade” e esse “dinamismo” sejam concebidos como corretivos da integração assimétrica que a globalização tem balizado, de uma parte, e, de outra, sem qualquer referência concreta que a “competitividade” e o “dinamismo” sejam orientados por uma ética de responsabilidade com o futuro da humanidade.

Na verdade, a universidade é assim apenas concebida como parte integrante de uma expansão indefinida do processo de acumulação, inclusive sem qualquer cautela em relação à já evidente finitude dos recursos naturais   - um limite concreto para o caminho econômico predatório em curso -   e mesmo com as conseqüências sociais do processo de acumulação ilimitado.

O modelo de desenvolvimento americano é um exemplo dramático desta situação: a relação sócio-metabólica desde modelo de produção (para usar uma expressão de István Mèzaros) com os recursos naturais já se choca frontalmente com as possibilidades de preservação da existência futura da humanidade.

O governo do Presidente Lula, no Brasil, está se propondo fazer a primeira reforma, fora do esquema ultraliberal adotado por uma série de outras reformas feitas nos anos 90. Esta iniciativa poderá sinalizar algo de novo para a América Latina, com a consciência de que este “novo” só pode ser construído através de um diálogo dotado da mais ampla universalidade.

Deve ser um diálogo sem exclusões prévias, que esteja atento às grandes transformações financeiras, econômicas e políticas, que ocorreram nos últimos 40 anos. Estas transformações que foram, até agora, profundamente negativas para a América Latina, mas que, em função dos avanços técnicos, científicos e tecnológicos que estão na sua base, também abrem novas alternativas para o futuro, ao mesmo tempo que podem promover mais barbárie, descoesão e violência. As conquistas do conhecimento tanto permitem dizer que pela primeira vez na história humana é possível acabar com a carência dos bens necessários à reprodução da vida, mas também é possível extinguir os humanos da face da terra.

José María Gómez  fez uma síntese clara dos dois fatores que desencadearam a globalização financeira e que estão no centro da crise que vem destruindo os patamares mínimos da estabilidade da modernidade madura. São eles: “a liberalização de intercâmbio de bens e serviços e a mobilidade praticamente ilimitada do capital”.
 
É óbvio que estes dois fatores são, na verdade, produtos de um largo processo histórico de desenvolvimento do capitalismo e da democracia, mas cuja concretude tanto poderia adotar a forma atual, como outra forma, arbitrada na esfera da política. Ora, basta lembrar que o capitalismo tanto é compatível com a escravidão como é, também, compatível com a democracia política plena. É compatível com o fascismo e também com a construção dos direitos subjetivos individuais e dos direitos públicos subjetivos, que já se expressaram fortemente no contraditório processo de construção do Estado Moderno.

Neste sentido a universidade é, tanto um fator de criação de condições objetivas, culturais, científicas e sócio-políticas para afirmação da democracia e dos direitos humanos, como também pode ser um fator de reprodução indefinida das mesmas ou de piores condições de opressão social, na qual vive a maioria da humanidade.

Gostaria, então, de manifestar-me de imediato contra uma visão alienada e pseudomoderna, de que a função da Universidade é só criar quadros dotados de conhecimentos “suficientes” para serem aproveitados como mão-de-obra, mais, ou menos especializada, seja para a indústria, para os serviços e para o setor financeiro. Não é só isso.

A função da Universidade é a produção dos saberes através da “pesquisa”, é a socialização da cultura e do conhecimento através do “ensino”, é a capilarização do conhecimento e das tecnologias sociais através da “extensão”, que irradia a Universidade para a totalidade do organismo social. Neste movimento é que ela cria quadros de qualidade para serem aproveitados na esfera privada e na esfera pública, segundo a formação técnico-científica e humanística de cada um.

Se a função da universidade fosse apenas responder aos interesses imediatos da indústria ou do processo produtivo em geral, ela seria só uma continuidade linear da vida econômica e não uma indutora estratégica do conjunto de movimentos   - científicos e humanísticos - necessários para os processos de desenvolvimento econômico, cultural e de coesão social que se articulem com a idéia de nação. Ora, a nação é, na verdade, não os processos objetivos de produção e reprodução social e econômica que ocorrem no seu território, mas é o conjunto de pessoas que constituem a sua cultura, que edificam o seu modo de vida e vivem no seu território.

De outra parte, a produção do desenvolvimento científico e tecnológico, o ensino e a socialização dos saberes, devem estar orientados por objetivos éticos e políticos previamente definidos pelo sujeito. Estes objetivos só serão alcançáveis democraticamente se o sujeito pensa, anteriormente, o projeto de nação e constrói instrumentos para isso. Assim, o próprio “entendimento” da reforma como processo, de médio e longo curso, interage com a esfera da política, que define progressivamente a nação: utopia e realismo, portanto, interagem dialeticamente como o “sopro modela o vidro”.

O “sentido” do saber e da produção do conhecimento não são alheios à natureza da reforma. Os saberes das matemáticas tanto podem derivar para o cálculo econométrico, como para impulsionar as engenharias. A filosofia, tanto pode incidir sobre a bioética, como dar base à construção de novas teorias estéticas. E a pesquisa nuclear, tanto pode derivar para a produção de artefatos militares defensivos ou ofensivos, como pode ser voltada para construir máquinas complexas destinadas à produção de energia limpa e barata.

A mediação existente entre a ciência e a técnica, a técnica e a economia, a economia e a sociedade, é sempre a mediação que dá conteúdo concreto à “polis” e que, portanto, determina como se desenvolve e em que sentido se desenvolve o próprio processo de produção e socialização do conhecimento que é arbitrado pela política.

No documento preliminar, interno, que servirá de base para a exposição da segunda edição do texto do anteprojeto da Lei da Reforma, está registrado o seguinte:  “Nos últimos anos, vários países têm convocado sua capacidade crítica para um diagnostico das limitações e dos desafios enfrentados pelos sistemas universitários, gerando propostas de políticas nacionais. Da mesma forma estudos comparativos reforçam a avaliação de que ‘’o desenvolvimento e a qualidade de vida de uma Nação dependerão fundamentalmente do valor do seu ensino. Hoje a universidade brasileira está desafiada a exercer um papel de vanguarda na construção de um país que almeja ocupar o lugar valorizado na divisão internacional do trabalho, na chamada era da informação.

Hoje, uma nova reforma universitária que signifique um novo pacto entre governo, comunidade universitária e sociedade, é uma necessidade urgente para salvar a educação superior brasileira.

Essa valorização do papel da universidade contrasta com o quadro brasileiro em que o sistema de educação superior enfrenta, hoje, o maior desafio em termos latino-americanos: o nível de acesso é um dos mais baixos do continente; a proporção de estudantes nas instituições públicas reduziu-se a um terço do total; o peso da matrícula e das instituições privadas de educação superior tornou-se o mais alto da América Latina.”

Para que se tenha uma idéia da dimensão da tarefa que estamos nos propondo, gostaria de lembrar como exemplo, apenas alguns dados de um país importante, a Espanha, que passou, mais ou menos no mesmo período que o Brasil, por uma transição acelerada de modernização democrática depois de décadas de fascismo e que teve na Educação Superior um dos seus sustentáculos importantes. O exemplo não persegue a “adoção” de um “modelo espanhol” de reforma, mas apenas ilustra o gigantismo do trabalho que temos pela frente.

Em 1973, a universidade espanhola dispunha de 404 mil estudantes. No ano 2000 esta cifra ascendeu para 1.583.000 estudantes. Foi quadriplicando, e com qualidade (em menos de 30 anos), o número de estudantes universitários, inclusive com uma grande ampliação da rede pública.

Com esta evolução este país acompanhou o ritmo dos países da OCDE, agora com mais de 50% dos seus jovens entre 18 e 24 anos na universidade, mas ainda com números bem inferiores aos do Canadá, em torno de 88% e da Austrália, em torno de 76% .

É dramático dizer que no Brasil de hoje somente 11% dos jovens nesta faixa etária estão na Universidade, e, destes 11%, em torno de 70% dos matriculados estudam em instituições privadas, jovens com famílias de baixo poder aquisitivo.

Embora a rede não-estatal do ensino superior tenha cumprido uma importante função social ao disseminar o ensino superior no território nacional, não foi constituído um “sistema integrado de ensino superior”, baseado em exigências de qualidade com critérios sociais para a sua expansão. Infelizmente uma parte considerável destas escolas não tem as mínimas condições de funcionamento, exigíveis para uma formação de nível superior condizente com as nossas necessidades históricas.

Na verdade, os ajustes ultraliberais que se produziram na América Latina nos últimos 40 anos, geraram aquilo que Lester Thurow  chamou de “sociedade de soma zero”, na qual “os benefícios obtidos por alguns, em virtude dos desenvolvimentos capitalistas, se produzem às expensas da deterioração na situação de outro”. No caso do ensino superior restou para a maior parte dos jovens entre 18 e 24 anos uma educação de segunda categoria. Tal constatação não nos exime de reconhecer a excelência de várias instituições universitárias não-estatais espalhadas pelo país e a importância que elas terão para o nosso futuro.

Estados que toleram passivamente semelhantes desequilíbrios colocam em perigo a sua própria função legitimadora e a sua própria estabilidade, inclusive a estabilidade econômica, que será sempre precária enquanto a dívida pública não estiver sob controle, independentemente das cartilhas ortodoxas aplicadas religiosamente .

Nesta situação paralisante para a formação da nação, as “políticas compensatórias”, importantes como mediações de uma transição planejada para outro modelo de desenvolvimento e coesão social, tornam-se políticas permanentes. Políticas de cristalização de profundas desigualdades sociais, de fragmentação dos sujeitos sociais e dos sujeitos políticos e, também, focos de reposição permanente da desordem econômica. Sempre reimpulsionada por conflitos sociais incontroláveis. São conflitos cujo desfecho tem sido, quase sempre, o reforçamento da autoridade repressiva do Estado e a redução dos direitos, tanto sociais como políticos da cidadania.

Não é demais relembrar que, nestas circunstâncias   - por exemplo, no âmbito do direito do trabalho -,  ao invés da modernização das tutelas, para buscar a “formalização da informalidade”, gerando maior coesão social e por isso reforçando a credibilidade das instituições formais do Estado; ao invés da ampliação do âmbito protetivo da legislação do trabalho (barateando os custos da contratação pela desburocratização e pela desoneração do trabalho produtivo); ao invés de uma efetiva modernização do sistema legal, o que vem sendo promovido em escala global é o esmagamento de conquistas sociais mínimas daqueles direitos trabalhistas que emprestam dignidade mínima ao mundo do trabalho. A universalização da precariedade substitui o protecionismo residual do “welfare”.

Estas são reformas que só promovem  indeterminação,  insegurança e uma falsa “autonomia” dos trabalhadores, que se tornam, na verdade, autônomos em relação às redes de proteção social, construídas por dentro das reformas sociais-democratas. São as reformas que tornam a maioria dos “descartáveis” cada vez mais dependentes de ações compensatórias do Estado, o que mais amarra grande parte do povo na subcidadania e na subalternidade.

A “categoria” político-social “reforma”, registre-se, mudou de sentido. Já nas últimas décadas ela tem servido para designar as atuais contra-reformas que são a desmontagem das reformas da velha social-democracia, que aliás afastaram nos países ocidentais hoje desenvolvidos o “fantasma” da revolução.

Assim, para o ultraliberalismo o “bem estar social” é substituído pela caridade, como ação meramente assistencial. E o legítimo apelo ao dever moral de exercer a caridade passa a impregnar as políticas do Estado com programas sociais “focalizados e temporais”. Esta situação política foi introduzida, por exemplo, pelo Governo Collor no Brasil, pelo governo Carlos André Péres na Venezuela, pelo Presidente Menem na Argentina e pelo Presidente Salinas de Gortari no México .

Libertar o conteúdo da reforma do compromisso com esta visão pequena e sujeita apenas aos desígnios da globalização tutelada pelo capital financeiro e integrar a reforma num outro sentido da globalização, denunciando a precária paz social conseguida pelo paternalismo de políticas que devem ser provisórias, implica em pensar a reforma da universidade no contexto de um novo modelo de desenvolvimento e de paz social duradoura pela inclusão e pelo crescimento econômico sustentado. Um modelo que combine a estabilidade macroeconômica com políticas públicas corajosas e ousadas de largo alcance histórico e de grande abrangência social.

Lembremo-nos de outra parte que a contestação do ultraliberalismo, tanto pode ser feita através do nacionalismo, do fundamentalismo e do estatismo corporativo e desestruturador da sociedade civil, como pode ser feita a partir de uma visão moderna de democracia avançada, cuja síntese já foi orientado, aliás, até por sociais-democratas moderados, como Willy Brandt e Felipe Gonzalez.  No Manifiesto del Programa 2000 , eles apontaram, mesmo dentro de um contexto histórico hostil, a atualidade “das três universalizações: a saúde, o sistema educativo e as pensões que caracterizam o esforço do socialismo democrático na Europa, do ponto de vista dos serviços públicos e que foram conseguidos em muitos países europeus há décadas, (direitos que) foram logrados na Espanha nesta década”. Referiam-se à década de 90, época ainda de forte expansão e legitimidade das idéias ultraliberais.

Para que esta contestação democrática ao ultraliberalismo seja eficaz em países como o Brasil, devemos   - no plano da educação superior -   abandonar a idéia acomodada e genérica de que a universidade “faz a sociedade” sempre tendo como premissa a sociedade como ela está.

Esta posição deve ser substituída pela visão dinâmica  de que a universidade é feita a partir do ideal de sociedade que queremos construir e, portanto, que a reforma que queremos está subordinada ao conteúdo e ao sentido da sociedade a ser pactuada num processo político de médio e longo curso.

Isso implica numa dupla rebelião: em rebelar-se contra a visão estreita de que a universidade é simplesmente uma resposta das demandas da economia como ela está e que ela é um simples apêndice do processo de globalização financeira: se assim o fosse, tendo em conta que o modelo global atual vem é promovendo guerras, golpes, miséria, deserção radical de continentes inteiros como a África, a universidade atual deveria ser “contra-reformada” para dar sustentação a este processo perverso.

De outra parte, no contexto político de discussão da reforma e na elaboração das suas regras formais, é necessário deixar claro que as atividades de pesquisa, ensino e extensão, não podem nem ser partidarizadas   - porque devem ser políticas de Estado -  nem politizadas de maneira falsa, porque perderiam o seu sentido universalista.

O conteúdo da reforma não pode nem ser subordinado a visões “classistas”, sejam elas quais forem  - pois elas são sempre falsas universalidades -   nem podem ser um desdobramento mecânico das “necessidades” do modelo econômico em curso, porque ele está em processo de esgotamento e portanto em processo de mudança.

O processo econômico em curso, orientado pela globalização financeira, está duramente marcado pelos interesses dos “centros orgânicos” da economia mundial, que necessariamente respondem aos interesses dos países hegemônicos. Estes países necessitam, cada vez mais, apropriar-se dos recursos naturais e dos recursos (imateriais) oriundos dos saberes científico-tecnológicos, cujo uso produtivo não é pensado por eles a partir dos limites dos recursos naturais disponíveis. Por exemplo, a água existente no planeta, a nova capacidade de produzir energia limpa, assim como a enorme reserva de terras disponíveis para a produção de alimentos, são vantagens comparativas fundamentais nossas e que devem ser consideradas para fundamentar a nossa inserção no contexto global.

Mas o contexto histórico mundial, de outra parte, não autoriza nem fundamenta a conformidade com uma suposta vocação de sermos nação do “segundo grupo”, sob o argumento de que a globalização “já bloqueou” a mobilidade dos países que estão em posição secundária no cenário global: “O cenário indica que a abertura econômica, apesar dos traumas e reorganizações abruptas da produção, não necessariamente impede o desenvolvimento de inovações tecnológicas no Brasil. Os grandes exemplos estão na conhecida EMBRAER, no setor de hidrogeração da alemã Siemens, cujos centros de excelência mundial estão localizados no Brasil e no pólo cerâmico de Santa Catarina. Neste caso, houve aliança bem sucedida com produtores de insumos e design italianos .” São exemplos pontuais de uma enorme capacidade que temos de nos posicionar na vanguarda.

Pensar nas reformas pensando no mundo, tanto a partir de uma “dialética positiva” como “negativa”. O grande professor Milton Santos ao flagrar o fenômeno global da simultaneidade, hoje vigente no sistema-mundo, definiu-o assim: “o fenômeno da simultaneidade ganha, hoje, novo conteúdo. Desde sempre, a mesma hora do relógio marcava acontecimentos simultâneos, ocorridos em lugares os mais diversos, cada qual, porém, sendo não apenas autônomo como independente dos demais. Hoje cada momento compreende em todos os lugares, eventos que são independentes, incluídos em um mesmo sistema de relações” .

A compressão desta totalidade aponta que, de uma parte, os projetos nacionais são absolutamente necessários para compartilharmos de forma adequada também do novo “sistema-mundo” que deverá advir do processo atual, e, de outra parte, esta visão ensina que ele   - projeto de nação -  hoje só poderá existir combinando interdependência e soberania, construção de novos paradigmas e reordenamento das funções republicanas do Estado. A universidade é um instrumento constituinte fundamental da melhor possibilidade.

A produção de conhecimentos para a implementação de novas tecnologias sociais, para a criação de novas tecnologias, para a pesquisa biogenética, para o desenvolvimento da bioética, para a geopolítica e defesa é o que pode nos colocar, com soberania e autonomia, no contexto desta simultaneidade. Esta simultaneidade  é um outro nome do novo espaço mundial no qual o sentido nacional se realiza e comunga.

Recorro novamente ao documento que estamos produzindo, para a apresentação do segundo esboço do projeto-de-lei da Reforma:
         
“A educação como direito e como bem público” sintetiza os fundamentos de uma política educacional que é base de um projeto de nação soberana numa sociedade democrática, solidária e justa.
          
Esta é uma lição da experiência histórica de construção nacional, que desde a Revolução Francesa passando por várias experiências históricas na Europa e nas Américas, revelou a importância da educação pública para a cidadania republicana e a legitimidade democrática.
           
No Brasil, a educação foi definida constitucionalmente como “direito de todos e dever do Estado” há mais de quatro décadas. Esse direito social e humano é fundamental num país que ainda enfrenta o desafio do analfabetismo e formas de exclusão do sistema educacional.            

A educação escolar e a educação superior, por excelência, são instrumentos poderosos de formação de cidadãos e de profissionais voltados para a construção do patrimônio cultural brasileiro.
          
A educação associa-se a um projeto político que supõe uma visão da sociedade brasileira em termos atuais e futuros.
          
A missão pública da educação superior é formar cidadãos, profissional e cientificamente competentes e, ao mesmo tempo, comprometidos com o projeto de país.
         
O debate sobre a universidade pública brasileira, que vem dos anos sessenta, pôs em destaque duas questões: a sua democratização – entendida como ampliação do acesso ao ensino superior público, como gestão democrática e sua função social...
          
Um dos nossos pressupostos fundamentais é, portanto, a reafirmação da defesa da educação superior publica e gratuita.

Mas a Universidade brasileira, hoje   - se permanecer como está -  corre o risco de enterrar a função estratégica que deve exercer como lugar de produção de alta cultura e de conhecimentos científicos avançados, diante da emergência da cultura de massas. A cultura de massas  é, sem dúvida, um elemento construtor da identidade nacional, mas é, ao mesmo tempo, o rebaixamento da socialização cultural.

Ela tem a positividade prática da “inclusão” das pessoas singulares no mundo social, mas ao mesmo tempo ela produz um violento processo de segregação. Neste processo, a diferenciação entre a alta cultura e o conhecimento científico avançado, ergue barreiras para o exercício da cidadania e  estimula a mediocrização coletiva. Produz a degradação da formação educacional, gerando cidadãos manipuláveis, inclusive sem a capacidade de promover, de forma adequada e democrática, as próprias condições para o seu ascenso social e cultural.

A recuperação da centralidade acadêmica, a ampliação do acesso, a qualidade do ensino, os sistemas qualificados e abrangentes de avaliação, são os elementos que podem enfrentar as duras tensões entre a cultura universal e a cultura popular; entre a educação profissional e o mundo do trabalho; entre a pesquisa fundamental e a pesquisa aplicada às necessidades econômicas e sociais, inclusive para a formação de quadros destinados à prestação de trabalhos qualificados em qualquer âmbito da vida social. 

Este processo é que poderá estimular, também, a criação de mecanismos públicos e privados para a redução das desigualdades, para proporcionar ao país a integração dos seus cidadãos no mundo contemporâneo .

“Na sociedade contemporânea, conhecimento e poder se interpenetram em todos níveis, da esfera pública ao mercado, redefinindo o significado do espaço público nas universidades e afetando na raiz sua “missão social”. Esta questão, além de interferir na lógica da produção do conhecimento e suas formas de aplicação em benefício da sociedade, coloca também uma questão central de natureza ética: uma instituição pública não pode se deixar dominar pela lógica do mercado ou do poder...

Todos esses fatores estão alterando a identidade própria da educação superior e sua especificidade de instituição social, atingindo sua autonomia acadêmica pela erosão do espaço público e pela privatização do ethos acadêmico.”
                                                    
A  reforma deve afirmar e expandir a universidade pública para regiões estratégicas e áreas de conhecimento estratégico. Deve criar condições para que a universidade impulsione a redução  das desigualdades regionais, inclusive ampliando as oportunidades para os jovens originários das classes populares. Não somente porque isto é uma necessidade da construção democrática, mas também pelo fato objetivo de que estamos perante um processo brutal de perdas de cérebros, de não aproveitamento dos recursos humanos do nosso país e de desperdício dos próprios recursos naturais que o país dispõe.

Esta é a época das incertezas. Ela se insinua a partir de uma erosão permanente dos níveis de solidariedade e de sentido, que durante décadas conferiram tanto às existências privadas, quanto aos assuntos públicos, uma certa estabilidade dentro de padrões de dominação que detinham certa consensualidade.

Hoje, esta incerteza se torna mais grave, porque a busca de uma âncora subjetiva, que gere sensação de segurança, tem se focado massivamente em “novas certezas”, como o fundamentalismo, a xenofobia nacionalista e o racismo.

As respostas “espontâneas” à desagregação do modo de vida da modernidade madura, só podem expressar-se pela violência originária do irracionalismo, do qual deriva esta mesma espontaneidade . No acumulo atual já podemos esboçar algumas diretrizes, como proposta-síntese que visam informar o futuro texto legal.

1. Nossa proposta é de uma transformação na educação superior brasileira que vise atender aos anseios da sociedade para a construção de um país desenvolvido, democrático, com autonomia de decisão sobre os seus destinos, cujos cidadãos participem plenamente de um projeto de desenvolvimento sustentável.

2.Uma nova política precisa valorizar as universidades públicas como instituições estratégicas redefinindo a política de investimentos de curto e longo prazo em educação superior, ciência e tecnologia articulando-as com um projeto nacional..

3. No âmbito da macropolítica educacional o sistema de educação superior está de tal modo fragmentado que se tornou urgente construir um sistema nacional integrado de educação superior.

4. O subsistema de universidades públicas federais precisa, com a melhoria de sua qualidade global, ser o modelo de referência para o conjunto do sistema nacional,  reafirmando-se o papel essencial do financiamento do Estado à educação pública superior.

5. O subsistema público de universidades como modelo de referência deve ancorar-se numa concepção de universidade como instituição social cuja prática acadêmico-científica e social seja fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e respaldar-se na idéia de autonomia do saber, isto é, na liberdade acadêmico-científica.
          
6. As instituições não-públicas de qualquer natureza – particular, comunitária, confessional ou filantrópica – terão sua condição universitária reconhecida ou renovada com fundamento na qualidade, mediante processo periódico de recredenciamento baseado no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES)

7. Uma nova política de educação superior urge criar condições para a democratização do sistema – ampliação do acesso ao ensino superior público e como gestão participativa –, e sua função social – relevância para o desenvolvimento econômico e social do país.

8. O novo Sistema Nacional de Avaliação da Educação superior (SINAES) tem como principal objetivo a assegurar a qualidade acadêmica, avaliando se as instituições publicas e privadas estão cumprindo sua missão pública no âmbito local, regional ou nacional, coordenada pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES) e executada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira”(INEP).

9. As IES devem promover novas políticas de desenvolvimento e integração do ensino, pesquisa e extensão, priorizando a melhoria da qualidade e a    expansão dos cursos.

a) ensino de graduação (diurno e noturno), que valorize a formação humanista e científica, flexibilizem o perfil profissional dos formandos e considerem as condições de trabalho dos estudantes.
 
b) Ensino de pós-graduação: estimular a expansão qualificada dos cursos de pós-graduação, ampliando as possibilidades de acesso aos cursos de Mestrado e Doutorado, por meio de políticas de desconcentração regional dos cursos, apoiada no sistema de avaliação da CAPES.

c) No campo da pesquisa: fomentar o desenvolvimento de atividades de pesquisa em todas as áreas de conhecimento e níveis de ensino não só atendendo a sua vocação científica mas às demandas da sociedade, incluindo a pesquisa em humanidades e artes para contribuir no fortalecimento de nossa identidade cultural.

d) No campo da extensão: estimular que os estudantes cumpram o papel de profissionais e cidadãos incorporando a extensão nos planos curriculares e ampliar a interação da universidade com diferentes setores da sociedade.
              
10. Colocar o país no rol dos primeiros da América Latina em atendimento aos jovens da faixa etária de 18 a 24 anos estabelecendo metas ambiciosas de expansão, ampliando os recursos públicos em volume global e per capita..
              
11. Enquanto o setor público não absorver uma proporção de 40% da demanda por educação superior, os jovens, sobretudo, carentes de recursos financeiros, tenham assegurada a matrícula no setor privado através do ProUni que hoje representa o maior programa de bolsas de graduação da história republicana: mais de 100 mil bolsas.

Gostaria de referir rapidamente a três pontos importantes, que certamente estão sendo pensados por todos neste processo de reforma:

1º) A consideração da reforma do ensino superior como instrumento de qualificação e universalização do ensino básico, na formação de professores, na utilização de recursos da educação à distância, na reinvenção permanente de processos pedagógicos adequados às condições sociais, ambientais e culturais, de cada região de um Brasil que é extremamente diverso. Sem esta preocupação a reforma deixará de incidir sobre um dos obstáculos mais graves relacionados à coesão social e cultural do nosso povo, deixando campo livre à “cultura de massas” de baixa qualidade.

2º) A atenção para rejeitar quaisquer formas de corporativismo, que deve ser explicitada, normativamente, na reforma. Lembro que, no concreto, não há nenhuma diferença entre o corporativismo “de direita” e o “de esquerda”. Ele é sempre um momento organizativo primário da cidadania democrática, mas, quando transgride para tornar-se uma proposta de organização da sociedade, uma forma de luta  ou um padrão de organização de uma instituição, embora o seu discurso possa ser diverso ele é sempre o mesmo corporativismo. E hoje a sua forma histórica concreta é a do corporativismo tecnocrático, que ora se apropria do discurso “sindical” para legitimar-se no imediato, ora se apropria do discurso “revolucionário” para mobilizar consciências com base no romantismo revolucionário-proletário do início do século. Na verdade, repito, ele é sempre o mesmo: o suposto direito do fragmento contra o todo, a redução de todos os confrontos de idéias a “confrontos de classe”, a transformação das ideologias humanistas de caráter revo
lucionário em mercados de demandas de interesses fracionários ou privados .

3º) A reforma deve, também, prestar atenção na proposição de uma definição clara da autonomia. Sirvo-me diretamente de um texto alheio para referi-la: “Há uma outra condição para que a autonomia funcione: ela não pode ser concedida por isonomia. Não é porque a universidade “A” tornou-se autônoma,

que a universidade “B” ou “C” devem funcionar na mesma clave. Como há heterogeneidade entre as instituições e, portanto, níveis de desenvolvimento acadêmico e científico muito diferenciados, é preciso que cada autonomia seja feita com contrato social de deveres e obrigações a ser discutido e avaliado anualmente.  Ora, autonomia com irresponsabilidade é a criação da dependência mais antidemocrática, capaz de gerar uma universidade só para os grupos organizados internamente, que (tradicionalmente) só se mobilizam em função dos seus interesses imediatos” .

As barreiras a serem transpostas para a consecução da  Reforma não são pequenas.  Elas vão do radicalismo corporativo,  típicamente pequeno-burguês, até o elitismo neoliberal que vê o ser humano como uma “coisa” que pensa e atrapalha os cálculos de mercado.  Mas a caminhada  vale a pena.  Penso numa frase provocativa de uma passagem Thomas Mann, no seu genial Montanha Mágica, que serve por inteiro  para nós que aqui aceitamos o desafio de conciliar utopia e realismo:

“Que espécie de homem você é que perdeu o gosto por uma bela caminhada”.

Muito obrigado!

São Paulo, 25 de abril de 2005.

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